Uma aula de yoga perfeitamente atípica

Uma aula de yoga perfeitamente atípica

Há muito tempo que Ravi frequentava as aulas de yoga de Swamiji. Estava muito satisfeito com o mestre que tinha encontrado, maravilhava-se todos os dias com a pessoa sábia, madura, compassiva e humilde que procurara como seu mestre de yoga. Ravi não era daquela zona, e, apesar de o ashram de Swamiji ficar longe da aldeia onde habitava, era com total entrega e satisfação que percorria mais de 40quilómetros na sua pequena mota para praticar yoga com ele.
O próprio percurso era algo que o encantava todos os dias, sentia-se grato e tranquilo ao observar as montanhas Nilgiris que envolviam toda aquela zona do sul da Índia. Gostava daquele céu plácido, das árvores de chá, de sândalo, de café e dos eucaliptos, todos aqueles ricos aromas lhe enchiam os pulmões e a alma. O rio ladeava a pequena estrada de terra batida, fluía calmo, verde e límpido. A diversidade da flora era imensa, pequenas flores silvestres pintalgavam as planícies em volta das colinas baixas e as aves columbiformes, as garças e petinhas de coloração castanha-esverdeada enriqueciam ainda mais as suas manhãs enquanto o acompanhavam no seu caminho. Ao longe, nas altas montanhas, situava-se o território do elefante asiático e um dos últimos habitats de solitários tigres selvagens. Tantas vezes lhe vinha à ideia a voz gutural de Louis Armstrong “And I think to myself… what a wonderful world”.
Gostava dos seus colegas de prática, davam-se bem, era um grupo heterogéneo e cada um deles tinha algo peculiar a transmitir. No final da prática, guiados pelo seu professor, entoavam sempre um mantra que lhes relembrava o valor da paz, do amor, da gratidão, da confiança.
Aquela manhã estava destinada a ser completamente diferente e incomum.
A sala do ashram onde praticavam yoga situava-se no terceiro andar de uma casa modesta. Para lá chegar passavam uma larga portada em madeira e ferro fundido, caminhavam por uma vereda onde sempre espairecia um lânguido gatito, vizinho de um cão rabugento que nunca perdia a oportunidade de se fazer ouvir a quem entrava, e, finalmente, subia-se até à sala da prática. Acontece que a sineta que assinalava a chegada dos alunos estava a maior parte das vezes estragada, pois tocava, mas lá em cima o mecanismo que faria abrir a portada não funcionava.
Na sala aquietavam já os colegas de Ravi. Anjum era uma senhora extremamente meiga e doce, de poucas palavras, porém de sorriso constante e olhos que transbordavam mel. Arundhati, uma jovem que ingressara recentemente no grupo, manteve-se calada e provavelmente um tanto ou quanto espantada com o episódio que à sua frente se desenrolaria. Guinesh estava sempre confidente, radioso, robusto e com acentuado sentido de humor. Maya vivia aparentemente sozinha, nos seus sessentas, praticava há longa data com Swamiji, mantinha-se fiel, por vezes exigente e frequentemente com razão, acontecia que alguns colegas chegavam após o começo da aula e ela reclamava dos seus direitos, visto que não pretendia ser interrompida nos seus exercícios e contemplações. Rabindranath fazia-lhe companhia, era ponto assente que os horários eram para cumprir, e se ele chegava sempre a tempo independentemente dos afazeres e preocupações, a sua história de vida fazia-lhe crer que dos outros o mesmo exigiria, certamente com uma indubitável razão. A jovem Anushka e o seu vizinho Saroo, à semelhança do resto do grupo, viviam nas imediações, contudo naquele dia não tinham conseguido ir.
Quanto a Ravi, desde a noite passada que a vida lhe corria drasticamente mal. Tinha tomado conhecimento de que o seu melhor amigo se encontrava tragicamente doente, internado e em coma; tal foi a aflição e a tristeza que se apoderou dele que quase nem pregou olho lá longe na sua aldeia. Mesmo assim cedo pela manhã meteu-se a caminho para o yoga que tão bem lhe fazia. Nessa manhã, chovia a potes e ele conduzia e chorava que nem podia. O céu negro, o rio cinzento, a terra batida enlameada sobre a qual a motita mal se endireitava. Conduziu como podia, mal via, gritava até aos céus pedindo vida e proteção para o seu grande amigo, e pouco a pouco lá chegou ao seu destino, o ashram de Swamiji onde encontraria um abraço amigo no final da prática de yoga merecida.
Mas nem sempre a vida é previsível como é usual e desta vez Ravi tocava, tocava e a sineta não funcionava. Talvez por transmissão de pensamentos o seu mestre veio à janela e com ele falava, dando indicações para a portada abrir. Em vão. Já Ravi ponderava regressar a casa quando viu à sua frente o seu mestre em pessoa, sorridente, solícito, agora coberto das vestes que para a prática não necessitava, calçava as suas botas de chuva e fazia toda a vereda enlameada para o receber com o usual cumprimento “Seja bem-vindo!”. Ravi pediu sincera desculpa pelo atraso tão inusitado e ambos subiram os três andares que os separavam do restante grupo.
Porém, por esta única vez, o grupo estava atipicamente desordenado. Rabindranath exasperado, Maya indignada, a duas vozes reclamavam do seu tempo, do tempo roubado, de uma compensação devida. Como que em pergunta resposta, se Rabindranath dizia que assim não continuaria, Maya exigia respeito e cumprimento do horário. Ravi desfazia-se em desculpas e dizia que tinham razão. Todos falavam, todos argumentavam. Guinesh falava em tolerância e complacência, Swamiji dizia que a razão não estava nunca de um só lado e apelava a que o yoga continuasse, era a portada que estava estragada e lembrava quão distante era a casa de Ravi. O desvairamento estava instalado.
Com custo, o mestre serenou o grupo, ativou a prática, apelou ao alinhamento do ser e o poder do yoga subsistiu. Com calma relembrou a paz, a união e como cada um dos presentes poderia aproveitar a oportunidade que a vida nos dava para aprimorar e evoluir. A uns caberia Aceitar (Kṣānti) aquilo que não podiam alterar, essa pacífica adaptabilidade de aceitar comportamentos e situações que não se pode mudar, e ainda relembrar que a prática serve para nos ouvirmos a nós próprios e não nos voltarmos para os demais. A outros caberia provavelmente meditar sobre a Firmeza de propósito (Sthairyaṁ) e sobre esse ardente esforço para obter um objetivo na vida sob quaisquer circunstâncias, sobre autodisciplina e austeridade (Tapaḥ). A todos relembrou a Não-violência (Ahiṁsā), seja em forma verbal, de pensamentos ou mesmo factual. Além delas caberia também cultivar uma certa Purificação (Śaucaṅ), consistindo em atitudes e reflexões elevadas, evitando excesso de pensamentos negativos ou derrotismos. Não ficou de lado o Comando sobre o Pensamento (Ātma-vinigraha) relembrando essa possibilidade de se manter concentrado a cada momento e de evitar que a mente vagueie e tire o foco do que estamos a fazer.
Lentamente fomos alcançando um estado de equilíbrio e de mútuo respeito, e fomos conseguindo restaurar em nós esse Contentamento e Satisfação inatos (Santoṣa) que nos permitem naturalmente apreciar e aproveitar o que de belo a vida tem.
E assim se prova uma vez mais que a dor também leva ao crescimento, que quanto mais erramos mais oportunidades temos de progredir e ainda… que uma aula de yoga perfeitamente atípica pode, na verdade, tornar-se numa prática de yoga atipicamente perfeita.


Texto escrito por Cristina Diniz